quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

A revolução da bondade


Acho que a grande revolução, e o livro «Ensaio sobre a Cegueira» fala disso, seria a revolução da bondade. Se nós, de um dia para o outro, nos descobríssemos bons, os problemas do mundo estariam resolvidos. Claro que isso nem é uma utopia, é um disparate. Mas a consciência de que isso não acontecerá, não nos deve impedir, cada um consigo mesmo, de fazer tudo o que pode para reger-se por princípios éticos. Pelo menos a sua passagem pelo este mundo não terá sido inútil e, mesmo que não seja extremamente útil, não terá sido perniciosa. Quando nós olhamos para o estado em que o mundo se encontra, damo-nos conta de que há milhares e milhares de seres humanos que fizeram da sua vida uma sistemática ação perniciosa contra o resto da humanidade. Nem é preciso dar-lhes nomes. 

José Saramago, em “Folha de S. Paulo, Outubro 1995" 

domingo, 11 de novembro de 2012

A pipoca

Rubem Alves

A culinária me fascina. De vez em quando eu até me até atrevo a cozinhar. Mas o fato é que sou mais competente com as palavras do que com as panelas.

Por isso tenho mais escrito sobre comidas que cozinhado. Dedico-me a algo que poderia ter o nome de "culinária literária". Já escrevi sobre as mais variadas entidades do mundo da cozinha: cebolas, ora-pro-nobis, picadinho de carne com tomate feijão e arroz, bacalhoada, suflês, sopas, churrascos.

Cheguei mesmo a dedicar metade de um livro poético-filosófico a uma meditação sobre o filme A Festa de Babette que é uma celebração da comida como ritual de feitiçaria. Sabedor das minhas limitações e competências, nunca escrevi como chef. Escrevi como filósofo, poeta, psicanalista e teólogo — porque a culinária estimula todas essas funções do pensamento.

As comidas, para mim, são entidades oníricas.

Provocam a minha capacidade de sonhar. Nunca imaginei, entretanto, que chegaria um dia em que a pipoca iria me fazer sonhar. Pois foi precisamente isso que aconteceu.

A pipoca, milho mirrado, grãos redondos e duros, me pareceu uma simples molecagem, brincadeira deliciosa, sem dimensões metafísicas ou psicanalíticas. Entretanto, dias atrás, conversando com uma paciente, ela mencionou a pipoca. E algo inesperado na minha mente aconteceu. Minhas idéias começaram a estourar como pipoca. Percebi, então, a relação metafórica entre a pipoca e o ato de pensar. Um bom pensamento nasce como uma pipoca que estoura, de forma inesperada e imprevisível.

A pipoca se revelou a mim, então, como um extraordinário objeto poético. Poético porque, ao pensar nelas, as pipocas, meu pensamento se pôs a dar estouros e pulos como aqueles das pipocas dentro de uma panela. Lembrei-me do sentido religioso da pipoca. A pipoca tem sentido religioso? Pois tem.

Para os cristãos, religiosos são o pão e o vinho, que simbolizam o corpo e o sangue de Cristo, a mistura de vida e alegria (porque vida, só vida, sem alegria, não é vida...). Pão e vinho devem ser bebidos juntos. Vida e alegria devem existir juntas.

Lembrei-me, então, de lição que aprendi com a Mãe Stella, sábia poderosa do Candomblé baiano: que a pipoca é a comida sagrada do Candomblé...

A pipoca é um milho mirrado, subdesenvolvido.

Fosse eu agricultor ignorante, e se no meio dos meus milhos graúdos aparecessem aquelas espigas nanicas, eu ficaria bravo e trataria de me livrar delas. Pois o fato é que, sob o ponto de vista de tamanho, os milhos da pipoca não podem competir com os milhos normais. Não sei como isso aconteceu, mas o fato é que houve alguém que teve a idéia de debulhar as espigas e colocá-las numa panela sobre o fogo, esperando que assim os grãos amolecessem e pudessem ser comidos.

Havendo fracassado a experiência com água, tentou a gordura. O que aconteceu, ninguém jamais poderia ter imaginado.

Repentinamente os grãos começaram a estourar, saltavam da panela com uma enorme barulheira. Mas o extraordinário era o que acontecia com eles: os grãos duros quebra-dentes se transformavam em flores brancas e macias que até as crianças podiam comer. O estouro das pipocas se transformou, então, de uma simples operação culinária, em uma festa, brincadeira, molecagem, para os risos de todos, especialmente as crianças. É muito divertido ver o estouro das pipocas!

E o que é que isso tem a ver com o Candomblé? É que a transformação do milho duro em pipoca macia é símbolo da grande transformação porque devem passar os homens para que eles venham a ser o que devem ser. O milho da pipoca não é o que deve ser. Ele deve ser aquilo que acontece depois do estouro. O milho da pipoca somos nós: duros, quebra-dentes, impróprios para comer, pelo poder do fogo podemos, repentinamente, nos transformar em outra coisa — voltar a ser crianças! Mas a transformação só acontece pelo poder do fogo.

Milho de pipoca que não passa pelo fogo continua a ser milho de pipoca, para sempre.

Assim acontece com a gente. As grandes transformações acontecem quando passamos pelo fogo. Quem não passa pelo fogo fica do mesmo jeito, a vida inteira. São pessoas de uma mesmice e dureza assombrosa. Só que elas não percebem. Acham que o seu jeito de ser é o melhor jeito de ser.

Mas, de repente, vem o fogo. O fogo é quando a vida nos lança numa situação que nunca imaginamos. Dor. Pode ser fogo de fora: perder um amor, perder um filho, ficar doente, perder um emprego, ficar pobre. Pode ser fogo de dentro. Pânico, medo, ansiedade, depressão — sofrimentos cujas causas ignoramos.Há sempre o recurso aos remédios. Apagar o fogo. Sem fogo o sofrimento diminui. E com isso a possibilidade da grande transformação.

Imagino que a pobre pipoca, fechada dentro da panela, lá dentro ficando cada vez mais quente, pense que sua hora chegou: vai morrer. De dentro de sua casca dura, fechada em si mesma, ela não pode imaginar destino diferente. Não pode imaginar a transformação que está sendo preparada. A pipoca não imagina aquilo de que ela é capaz. Aí, sem aviso prévio, pelo poder do fogo, a grande transformação acontece: PUF!! — e ela aparece como outra coisa, completamente diferente, que ela mesma nunca havia sonhado. É a lagarta rastejante e feia que surge do casulo como borboleta voante.

Na simbologia cristã o milagre do milho de pipoca está representado pela morte e ressurreição de Cristo: a ressurreição é o estouro do milho de pipoca. É preciso deixar de ser de um jeito para ser de outro.

"Morre e transforma-te!" — dizia Goethe.

Em Minas, todo mundo sabe o que é piruá. Falando sobre os piruás com os paulistas, descobri que eles ignoram o que seja. Alguns, inclusive, acharam que era gozação minha, que piruá é palavra inexistente. Cheguei a ser forçado a me valer do Aurélio para confirmar o meu conhecimento da língua. Piruá é o milho de pipoca que se recusa a estourar.

Meu amigo William, extraordinário professor pesquisador da Unicamp, especializou-se em milhos, e desvendou cientificamente o assombro do estouro da pipoca. Com certeza ele tem uma explicação científica para os piruás. Mas, no mundo da poesia, as explicações científicas não valem.

Por exemplo: em Minas "piruá" é o nome que se dá às mulheres que não conseguiram casar. Minha prima, passada dos quarenta, lamentava: "Fiquei piruá!" Mas acho que o poder metafórico dos piruás é maior.

Piruás são aquelas pessoas que, por mais que o fogo esquente, se recusam a mudar. Elas acham que não pode existir coisa mais maravilhosa do que o jeito delas serem.

Ignoram o dito de Jesus: "Quem preservar a sua vida perdê-la-á".A sua presunção e o seu medo são a dura casca do milho que não estoura. O destino delas é triste. Vão ficar duras a vida inteira. Não vão se transformar na flor branca macia. Não vão dar alegria para ninguém. Terminado o estouro alegre da pipoca, no fundo da panela ficam os piruás que não servem para nada. Seu destino é o lixo.

Quanto às pipocas que estouraram, são adultos que voltaram a ser crianças e que sabem que a vida é uma grande brincadeira...

"Nunca imaginei que chegaria um dia em que a pipoca iria me fazer sonhar. Pois foi precisamente isso que aconteceu".

O texto acima foi extraído do jornal "Correio Popular", de Campinas (SP), onde o escritor mantém coluna bissemanal.

Rubem Alves: tudo sobre sua vida e sua obra em "Biografias".


domingo, 6 de novembro de 2011

Jorge Amado


Jorge Amado

Estamos diante do escritor brasileiro mais lido e mais traduzido em línguas estrangeiras, deste século. Jorge amado nasceu em Piranji, no estado da Bahia, em 1912, ano em que se cozinhavam efervescências que encontrariam nele, homem feito, um porta voz brilhante. Não se pode falar de fazes quando se examina a obra de Jorge Amado, fase no sentido de amadurecimento, de orientação literária, mas é permitido descobrir-lhe fases de produção, em que os livros se seguem numa sequência de tempo, de regularidade impressionante. Assim, seus treze romances aparecem em estréia com O País do Carnaval, em 1932; Cacau, que alcançou seu primeiro grande êxito, em 1933; Suor, em 1934; Jubiabá, em 1935; Mar Morto, em 1936; e, finalmente, Capitães da Areia, em 1937.

A segunda série, vamos dizer assim, sem falar em fase, recomeçou somente cinco anos mais tarde, as Terras do Sem Fim, em 1972; São de Ilhéus, em 1914; e Seara Vermelha, em 1946, com uma regularidade bem marcada de dois em dois anos, quando a primeira série saíra com o intervalo de um ano apenas. 

Passam-se seis anos para Jorge Amado reaparecer com Os Subterrâneos da Liberdade, que é de 1952; o célebre Gabriela, Cravo e Canela, em 1958; Os Velhos Marinheiros, em 1961; Os Pastores da Noite, de 1963. Jorge Amado escreveu uma peça para teatro. O Amor do Soldado, e ainda um colorido guia turístico, que vai além do simples turismo e entra por considerações de ordem social, tendência tão marcada em toda obra desse eminente homem de letras. O livro tomou o título de Bahia de Todos os Santos. A biografia atraiu, de passagem, o escritor baiano, que escreveu O ABC de Castro Alves, biografia romanceada. Por fim, algo de menor suculência, como O Cavaleiro da Esperança. 

E como tivesse ido viajar, dar uma espiada, como ele diz, lá por fora. Jorge Amado nos deu O Mundo da Paz, onde relata impressões de viagem com aquela sua muito especial facilidade de expressão que faz o encanto maior da obra. Os livros de Jorge Amado estão traduzidos em trinta idiomas diferentes, que vão do francês ao persa, do servo-croata ao holandês, do mongol ao grego, ao árabe e ao esloveno, para citar somente os que representam uma raridade nesse plano da comunicação universal.

A meninice e a infância de Jorge se passaram numa fazenda de cacau, na Bahia. Os estudos secundários, ele fez em Salvador. Começaram no Ginásio os primeiros sinais de rebeldia, de vontade de dizer algo em termos novos, como o exigiam os tempos novos que apontava.

E aos 18 anos, precisamente em 1930, Jorge Amado muda-se para o estado do Rio de Janeiro, onde desembarca em plena efervescência. Matrícula-se na Faculdade de Direito, encontrando um clima perfeitamente desejado como moldura para o que seria dali para frente.

Ficção ou regionalismo eis como se pode situar a obra fascinante desse escritor.

Em 1961, Jorge Amado é eleito para Academia Brasileira de Letras com um bagagem literária notável. 

Desde 1955, porém, os grandes sinais de amadurecimento apareciam fixando aspectos de considerável expressão dessa obra tão variada quanto sempre viva e renovada. Seu discurso de recepção na Academia é dos mais belos que ali se produziram.

Contrariamente ao que se tem escrito, não nos parece que Jorge Amado deva figurar na corrente modernista dos escritores chamados mais precisamente de nordestinos. Colocado, geograficamente no centro do Brasil, o escritor baiano é brasileiro antes de mais nada, sem as limitações de um regionalismo menos liberto. Seu regionalismo não basta para fixar-lhe limites ou situá-lo em grupos ou escolar.

Em 1946, Jorge Amado foi eleito Deputado Federal na lista do Partido Comunista Brasileiro, fato que revela uma tendência político-social, aliás bem marcada, quando trata de miséria, do analfabetismo, da fome, do suor no Brasil e das injustiças sociais também.

Era o romancista brasileiro que pintava o Brasil nas cores que os estrangeiros querem ver: fortes, sensuais e tropicais.

Academia 

Ai veio a eleição do escritor para a Academia Brasileira de Letras, em 1954, exatamente quando se pensava que Jorge Amado não faria mais, doravante, que obras de apologia revolucionária em que os heróis eram fatalmente proletários e os burgueses os vilões da história.

Amado ocupou a cadeira de Otávio Mangabeira, autor de um discutido "Machado de Assis", em que resumia sofrivelmente a obra de grande autor de "Dom Casmurro". Nessa época, o crítico Wilson Martins, no "Estado de São Paulo", lembrava que Mangabeira havia instituído no Brasil em debate já encerrado em outros países: o de saber se o "Reader's Digest" é um bom modelo literário. Mas logo depois, Jorge Amado, voltou à vida literária com surpreendente vigor, produzindo "Gabriela, Cravo e Canela" (1958 e pouco depois "Os Velhos Marinheiros" (1960).

Essa ressurreição, no entanto, nunca impediu que alguns críticos vissem Jorge Amado como responsável pelo enxame de romancistas de um certo gênero que se multiplicou nas letras brasileiras. Mas ninguém é totalmente culpado pelas influências que exerce, e o novo escritor, o de "Gabriela" era pai de uma deliciosa narrativa em que a sensualidade punha a mesa. É verdade que "O Cavaleiro da Esperança", uma biografia heróica e fantasiosa de Prestes, chegava à sua nona edição, com mercado garantido nos grandes centros brasileiros. 

O mundo estava então ainda longe da "perestroika", e Amado distante do seu "meia culpa". Mas ele era, a essa altura, muito mais do que "um mero baiano romântico e sensual", como se havia definido no passado. Os excessos ideológicos foram uma doença mundial, e sua obra anterior garantia-lhe a justa fama de escritor.

Lirismo e Política

As primeira pinturas da vida baiana ("Cacau e Suor") valiam pelo lirismo, não pela aparência exterior de "romance proletário". Os amores minheiros que vieram depois (Jubiabá", "Mar Morto", "Capitães de Areia") eram poéticos e algumas vezes muito fortes. Os livros de pregação política eram cansativos para quem não participava da "torcida" ("O Cavaleiro da Esperança", "O Mundo da Paz").  Os quadros da região do cacau foram, dos antigos, possivelmente os melhores ("São Jorge dos Ilhéus), Terras do Sem-Fim"). Mas são as crônicas de costumes provincianos que caracterizam o novo Jorge Amado ("Gabriela", "Dona Flor e seus Dois Maridos", "Teresa Batista Cansada de Guerra", "Tieta do Agreste", "Tenda dos Milagres" etc.). Com 60 anos de produção, cerca de 30 livros escritos, quase todos traduzidos em cerca de 50 idiomas. Amado torna-se consagrado como um dos maiores autores brasileiros de todos os tempos.

A certa altura de sua vida e como efeito da extraordinária popularidade, que o cercou sempre, Jorge Amado viu-se forçado a escrever longe de sua casa em Salvador, na Bahia.

Primeiro em Portugal, depois em Paris, ele e sua companheira há 50 anos, a escritora Zélia Gattai, escreveram e trataram da edição dos seus livros. Amado em 1922 interrompeu o projeto de "Boris, o Vermelho", uma bem-humorada penitência do seu passado stalinista, para adiantar um livro de memórias que afinal não concluiu. "Navegação de Cabotagem" é qualquer coisa nessa linha, e chegou logo às livrarias. Um pouco adiante, nos primeiros dias de setembro, em 1922, seria lançado "Bahia Amado Amado", com trechos dos primeiros livros do escritor e a fotografia soberba de Maureen Bissiliat. Essa obra teve como substituto "O Amor á Liberdade e A Liberdade do Amor". Uma nova, uma antiga, sua eterna declaração de amor à Bahia, ao País em que nasceu, à Humanidade de que é observador e cronista incansável.


sábado, 24 de setembro de 2011

Graciliano Ramos


Graciliano Ramos

Graciliano Ramos nasceu em Quebrângulo, Alagoas, em 27 de outubro de 1892. Fez apenas os estudos secundários em Maceió. Após rápida passagem pelo Rio de Janeiro, fixa-se em Palmeira dos Índios, interior de Alagoas; jornalista e político, chega a exercer o cargo de prefeito da cidade.

Estréia em livro em 1933, com o Romance Caetés; nessa época trabalha em Maceió, dirigindo a Imprensa Oficial e a lnstrução Pública, e trava conhecimento com José Lins do Rego, Rachel de Queiroz e Jorge Amado. Em março de 1936 é preso por atividades consideradas subversivas sem, contudo, ter sido acusado formalmente; após sofrer humilhações de toda sorte e percorrer vários presídios, é libertado em janeiro do ano seguinte. Essas experiências pessoais são retratadas no livro Memórias do cárcere.

Em 1945, com a queda da ditadura de Getúlio Vargas e a volta do país à normalidade democrática, Graciliano filia-se ao Partido Comunista Brasileiro, o qual integra até 1947, quando o partido é novamente considerado ilegal. Em 1952 viaja para os países socialistas do Leste Europeu, experiência descrita em Viagem. Falece no Rio de Janeiro, em 20 de março de 1953.

Graciliano Ramos é hoje considerado por grande parte da crítica nosso melhor romancista moderno. Além disso, é tido como o autor que levou ao limite o clima de tensão presente nas relações homem / meio natural, homem / meio social, tensão essa geradora de um conflito intenso, capaz de moldar personalidades e de transfigurar o que os homens têm de bom.

Nesse contexto violento, a morte é uma constante; é o final trágico c irreversível, decorrente de relacionamentos impraticáveis. Assim, encontramos suicídios em Caetés e São Bernardo, um assassinato em Angústia e as mortes do papagaio e da cadela Baleia em Vidas Secas.

Em seus romances, a lei maior é a da selva. Portanto, a luta pela sobrevivência parece ser o grande ponto de contato entre todos os personagens. Em conseqüência, uma palavra se repete em toda a obra do escritor: bicho, ou ainda, como no início de Vidas secas, viventes, aqueles que só têm uma coisa a defender - a vida:

"Ainda na véspera eram seis viventes, contando com o papagaio. Coitado, morrera na areia do rio, onde haviam descansado, à beira de uma poça: a fome apertara demais os retirantes e por ali não existia sinal de comida. Baleia jantara os pés, a cabeça, os ossos do amigo, e não guardava lembrança disto."

As condições subumanas nivelam animais e pessoas. Pensemos um pouco nessa curiosa "família": dois humanos adultos, identificados apenas pelos nomes Fabiano e Sinhá Vitória (eles não têm sobrenome), dois humanos infantis sem nome, identificados como "o mais velho" e "o mais novo", e dois bichos - o papagaio e a cachorra Baleia -, um identificado pela espécie, outro pelo nome próprio.

O papagaio é sacrificado, devorado canibalisticamente, em nome da sobrevivência dos demais; a cadela Baleia também é sacrificada em nome da sobrevivência dos demais - doente, ela atrapalhava a caminhada da família.

A tensão permeia toda a obra de Graciliano Ramos: evolui de Caetés até Vidas secas, num crescendo que passa por São Bernardo e Angústia. Acentua-se ainda mais na passagem da ficção à realidade, atingindo o ápice no livro em que relata suas experiências na cadeia, o qual, entretanto, ultrapassa o plano pessoal para retratar o Brasil em importante momento histórico, quando a convivência homem / meio social torna-se impossível. A obra é universal se considerarmos que descreve as humilhações sofridas por todos os prisioneiros políticos na ausência de um estado de direito.

O crítico Antonio Candido divide a obra de Graciliano em três categorias:

a) Romances narrados em primeira pessoa (Caetés, São Bernardo e Angústia), nos quais se evidencia a pesquisa progressiva da alma humana, ao lado do retrato e da análise social.

b) Romance narrado em terceira pessoa (Vidas secas), no qual se enfocam os modos de ser e as condições de existência, segundo uma visão distanciada da realidade.

c) Autobiografias (Infância e Memórias do cárcere), em que o autor se coloca como problema e como caso humano; nelas transparece uma irresistível necessidade de depor.

E o crítico conclui:

"(...) no âmago da sua arte,há um desejo intenso de testemunhar sobre o homem, é que tanto os personagens criados quanto, em seguida, ele próprio, são projeções deste impulso fundamental, que constitui a unidade profunda dos seus livros."

Graciliano Ramos é autor de enredos que envolvem a seca, o latifúndio, o drama dos retirantes, a caatinga, a cidade. Seus personagens são seres oprimidos, moldados pelo meio - Luís da Silva, pela cidade; Paulo Honório e Fabiano, pelo sertão.

E, dentro das estruturas vigentes, não há nada a fazer a não ser aceitar a força do "inevitável". Daí Rolando Morel Pinto, em brilhante tese sobre o autor, afirmar que as construções de Graciliano Ramos acabam sempre em palavras de sentido negativo e, principalmente, na palavra inútil:

"Parece que, dentro da posição pessimista e negativista do autor, segundo a qual as pessoas nunca fazem o que desejam, mas o que as circunstâncias impõem, gestos, intenções, desejos e esforços, tudo se torna inútil."

A única saída seria mudar as estruturas e o sistema que geram Paulo Honório e sua ambição, o burguês Julião Tavares e os prepotentes soldados amarelos, estes últimos símbolo da ditadura Vargas.

Do ponto de vista formal, Graciliano Ramos talvez seja o escritor brasileiro de linguagem mais sintética. Em seus textos enxutos, a concisão atinge seu clímax: não há uma palavra a mais ou a menos. Trabalha a narração com a mesma mestria, tanto em primeira como em terceira pessoa.


Sobre a obra

Obra de Louvor a Graciliano Ramos, Escritor de Linha Socialista que viveu uma Experiência muito especial em Educação. Quando foi Prefeito em Palmeira dos Índios, Alagoas. Não tinha recursos para investir em alunos, mas tinha a sua proposta de construção da consciência do aluno, para uma vez consciente, ele insurgir e estudar, e alterar a história do seu rendimento pela sua disposição motivada para estudar.

A Experiência foi um sucesso e os alunos pobres sem calçados, tiravam notas mais altas que os alunos regulares das famílias abastadas de todos os recursos. Conseguiu em meio às condições adversas que a consciência forte pela convicção, superasse a pobreza e as dificuldades, e conseguisse resultados surpreendentes. Graciliano Ramos foi preso e muito humilhado, nada abalou a sua convicção, foi um Escritor muito admirado, publicado e lido no Brasil e fora do Brasil e muito especial e destacado nos Países Socialistas, e só foi superado por Jorge Amado e Paulo Coelho.

domingo, 1 de maio de 2011

Clarice Lispector



Clarice Lispector

Escritora brasileira de origem ucraniana (10/12/1920-9/12/1977). Natural da cidade de Tchetchelnik, vem para o Brasil recém-nascida. Estabelece-se com a família no Recife, Pernambuco, onde passa toda a infância.

Em 1937 muda-se para o Rio de Janeiro. Estréia na literatura com o romance Perto do Coração Selvagem, com apenas 17 anos. Na época, o crítico Álvaro Lins identifica seu trabalho como dentro "do espírito e da técnica de Joyce e Virgínia Woolf".

Casa-se com o diplomata Maury Gurgel Valente em 1943 e vive fora do país, entre a Europa e os Estados Unidos, até 1959. Nesse ano se separa do marido e volta a morar no Rio com os filhos Pedro e Paulo.

Para sustentá-los, escreve contos para a revista Senhor e colabora em jornais. Nos livros A Maçã no Escuro (1961), A Paixão Segundo G.H. (1964), Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres (1969) e A Hora da Estrela (1977) encontram-se características marcantes de seu estilo, como o emprego da metáfora insólita e a subjetividade do fluxo da consciência, que rompe com o enredo factual.

A narrativa revolucionária faz dela um dos nomes mais importantes da segunda fase do modernismo. É autora também de A Legião Estrangeira (1964), que reúne contos e crônicas. Tem dois romances, Um Sopro de Vida e Pulsações, publicados postumamente, em 1978. Morre no Rio de Janeiro. 


Aos meus amigos, um pequeno texto, muito real, verdadeiro, adequado ao meu momento:

“EU NÃO ENTENDO!
Por medo da loucura, renunciei à verdade.
Minhas idéias são inventadas.
Eu não me responsabilizo por elas.
O mais engraçado é que nunca aprendi a viver.
Eu não sei nada.
Só sei ir vivendo.
Eu tenho medo do ótimo e do superlativo.
Quando começa a ficar muito bom eu ou desconfio ou dou um passo para trás."

Clarice Lispector




Um sopro de vida

Não aguento muito tempo um sentimento
porque passo a ter angústia
e meu pensamento fica ocupado com o sentimento
e eu me desvencilho dele de qualquer jeito
para ganhar de novo a minha liberdade de espírito.

Sou livre para sentir. Quero ser livre para raciocinar.
Aspiro a uma fusão de corpo e alma.

Não consigo compreender para os outros.

Só na desordem de meus sentimentos é que compreendo
para mim mesma e é tão incompreensível o que eu sinto
que me calo e medito sobre o nada.

Clarice Lispector









Há momentos na vida em que sentimos tanto
a falta de alguém que o que mais queremos
é tirar esta pessoa de nossos sonhos
e abraçá-la.

Sonhe com aquilo que você quiser.
Seja o que você quer ser,
porque você possui apenas uma vida
e nela só se tem uma chance
de fazer aquilo que se quer.

Tenha felicidade bastante para fazê-la doce.
Dificuldades para fazê-la forte.
Tristeza para fazê-la humana.
E esperança suficiente para fazê-la feliz.

As pessoas mais felizes
não têm as melhores coisas.
Elas sabem fazer o melhor
das oportunidades que aparecem
em seus caminhos.

A felicidade aparece para aqueles que choram.
Para aqueles que se machucam.
Para aqueles que buscam e tentam sempre.
E para aqueles que reconhecem
a importância das pessoas que passam por suas vidas.

O futuro mais brilhante
é baseado num passado intensamente vivido.
Você só terá sucesso na vida
quando perdoar os erros
e as decepções do passado.

A vida é curta, mas as emoções que podemos deixar
duram uma eternidade.
A vida não é de se brincar
porque um belo dia se morre.

Clarice Lispector



"Mas se eu gritasse uma só vez que fosse, talvez nunca mais pudesse parar. Se eu gritasse ninguém poderia fazer nada por mim, se eu nunca revelar a minha carência, ninguém se assustará comigo e me ajudarão sem saber, mas só enquanto eu não assustar ninguém por ter saído dos regulamentos. Mas se souberem, assustam-se, nós que guardamos o grito em segredo inviolável. Se eu der o grito de alarme de estar viva, em mudez e dureza me arrastarão, pois arrastam os que saem para fora do mundo possível, o ser excepcional é arrastado, o ser gritante."

Clarice Lispector





Minha força está na solidão.
Não tenho medo nem de chuvas tempestivas
nem de grandes ventanias soltas,
pois eu também sou o escuro da noite.

Clarice Lispector





sábado, 23 de abril de 2011

Rachel de Queiroz


Rachel de Queiroz

Filha de intelectuais, Raquel de Queiroz descendia pelo lado paterno do romancista José de Alencar. Ainda criança, mudou-se com a família para o Rio de Janeiro, fugindo da seca de 1915. (O fato seria depois tematizado em “O Quinze”).

Logo em seguida, a família mudou-se de novo, indo para Belém, onde ficou dois anos. Em 1917, voltou para Fortaleza, pois o pai foi designado juiz na capital cearense.

Em 1921, Raquel ingressou na escola normal, onde se diplomaria em 1925.

Estreou em jornal em1927, com o pseudônimo Rita de Queiroz. Em 1930, aos 20 anos, publicou “O Quinze”, seu primeiro romance. Tratando dos flagelados e da pobreza nordestina, foi bem recebido pela crítica, tendo recebido comentários de intelectuais como Augusto Frederico Schmidt e Graça Aranha.

Na década de 1930, Raquel entrou para o Partido Comunista Brasileiro, desenvolvendo militância política em Pernambuco (em 1937, chegaria a ser presa).

Casou-se com José Auto da Cruz Oliveira em 1932. Na mesma época colaborou como cronista para jornais e revistas e publicou uma série de traduções, de autores como Jane Austin, Balzac e Dostoievski.

Em 1937, saiu o romance “Caminho de Pedra”. Dois anos depois, foi a vez de “As Três Marias”. Em 1948, suas crônicas foram reunidas na antologia “A Donzela e a Moura Torta”.

A autora estreou no teatro em 1953, com a peça “Lampião”. Em 1958, publicou “A Beata Maria do Egito”.

Nos anos de 1960, Raquel de Queiroz passou a colaborar com o governo militar, sendo nomeada para integrar o Conselho Federal de Educação em 1967.

Em 1969, lançou “O Menino Mágico”, seu primeiro romance infanto-juvenil. Em 1975, publicou o romance “Dora Doralina”. Dois anos depois tornou-se a primeira mulher a entrar para a Academia Brasileira de Letras.

Traduzida para diversos idiomas, tendo ainda livros adaptados para o cinema e para a televisão, Raquel de Queiroz obteve amplo reconhecimento por sua obra. Em 1989, a José Olympio Editora publicou sua “Obra Reunida”, em cinco volumes.

Em 1992, escreveu “Memorial de Maria Moura”, romance que lhe trouxe diversos prêmios, entre eles o prestigiado Camões, dedicado ao melhor autor do ano em língua portuguesa.

Aos 92 anos, dormindo em sua rede, morre Raquel de Queiroz.


TELHA DE VIDRO

Quando a moça da cidade chegou
veio morar na fazenda,
na casa velha...
Tão velha!
Quem fez aquela casa foi o bisavô...
Deram-lhe para dormir a camarinha,
uma alcova sem luzes, tão escura!
Mergulhada na tristura de sua treva e de sua única portinha...

A moça não disse nada,
mas mandou buscar na cidade
uma telha de vidro...
Queria que ficasse iluminada
sua camarinha sem claridade...

Agora,
o quarto onde ela mora
é o quarto mais alegre da fazenda,
tão claro que, ao meio dia, aparece uma
renda de arabesco de sol nos ladrilhos
vermelhos,
que — coitados — tão velhos
só hoje é que conhecem a luz do dia...
A luz branca e fria
também se mete às vezes pelo clarão
da telha milagrosa...
Ou alguma estrela audaciosa
careteia no espelho onde a moça se penteia.

Que linda camarinha! Era tão feia!
— Você me disse um dia
que sua vida era toda escuridão
cinzenta, fria, sem um luar, sem um clarão...
Por que você não experimenta?
A moça foi tão bem sucedida...
Ponha uma telha de vidro em sua vida!

Rachel de Queiroz


Geometria dos ventos

Eis que temos aqui a Poesia,
a grande Poesia.
Que não oferece signos
nem linguagem específica, não respeita
sequer os limites do idioma. Ela flui, como um rio.
como o sangue nas artérias,
tão espontânea que nem se sabe como foi escrita.
E ao mesmo tempo tão elaborada -
feito uma flor na sua perfeição minuciosa,
um cristal que se arranca da terra
já dentro da geometria impecável
da sua lapidação.
Onde se conta uma história,
onde se vive um delírio; onde a condição humana exacerba,
até à fronteira da loucura,
junto com Vincent e os seus girassóis de fogo,
à sombra de Eva Braun, envolta no mistério ao
mesmo tempo.

Rachel de Queiroz